Translate

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Marie Kondo e o trabalho invisível das mulheres.



Sua técnica não é voltada apenas para a “mulher” cuidar de tudo. É um chamado da responsabilidade de todos.
Marie Kondo vai muito além da moça insossa e bem organizada que joga na nossa cara a incapacidade de organizar a vida doméstica. Essa imagem, na verdade, era a que eu tinha dela quando apenas o sucesso do seu livro e as infinitas “técnicas de organização” começaram a bombardear minha timeline. “Lá vem essa lógica higienista, quase fascista, de minha casa ter que parecer anúncio de revista o tempo todo”, pensei. 
Comecei a querer ler mais por curiosidade e vontade de falar mal de forma qualificada. Mas a série dela na Netflix pulou na minha frente primeiro e isso provavelmente mudou bastante a pré-imagem que eu havia concebido.
Marie Kondo Tyding Up está longe de ser a primeiríssima do gênero, principalmente na TV aqui do Brasil. Posso citar “Santa Ajuda”, do canal GNT, com suas estantes, caixinhas e organizadores, mais voltadas para um cômodo específico da casa; e quadros no programa Bem-Estar e É de Casa (ainda existe?) da TV Globo que também abordam o tema de forma mais fragmentada. Ela, portanto, está longe de ter a alcunha de “inauguradora” da narrativa. 
Quem tem casa, é mulher, não mora sozinha e não tem empregada já se viu às voltas com a capacidade de as coisas saírem do lugar, não voltarem e, pior, ter seu nome escrito e sussurrado o tempo inteiro como responsável por aquilo — fenômeno que o quadrinho francês chama de “carga mental”. E de como somos condicionadas a não ter capacidade de concentração nas “nossas próprias atividades”, como estudar ou apenas curtir o ócio, quando as coisas da casa estão por fazer. Um peso que dificilmente chega nos homens, por mais noção que eles tenham da “bagunça”, é como se eles não se sentissem responsáveis por ela. 
Os afazeres coletivos da casa tem endereço certo na subjetividade, por maior que seja o esforço concreto da divisão de tarefas.
Ao assistir Marie Kondo, eu me surpreendi com dois fenômenos que tangenciam a série no estilo “atirei no que vi, acertei no que não vi”: a exposição do trabalho invisível das mulheres (a Vice até fez uma reportagem) e a nossa relação com a casa e o consumo. 
Sobre o trabalho invisível das mulheres, presente em diversos episódios, há trechos hilários (que despertam a ira) de como os homens são incapazes e acomodados. Mais do que isso, ao convidar todo mundo da família para participar da “arrumação” e fazer disso um momento de “alegria” e não de gritaria, Marie envolve a todos na responsabilidade. 
Convite a todos 
Diferente dos outros programas do gênero, a técnica não é voltada apenas para a “mulher” cuidar de tudo. Ou de um cômodo específico. Marie Kondo afirma que todos da casa devem ser capazes e responsáveis pelas suas próprias coisas. De como envolver as crianças, mesmo ainda pequenas, nas atividades diárias para garantir uma existência em coletivo minimamente digna. 
Ao contrário do que pensei, não é uma ode à casa limpa e perfumada e arrumada o tempo inteiro que apenas a mulher precisa manter, ou seja, o reforço de mais um fardo que a dona de casa carrega ao longo dos séculos. 
É um chamado da responsabilidade de todos. E para isso, ela lança mão de alguns recursos que não são apenas técnicas de gavetinhas e armários, como a espiritualidade.
Espiritualidade
Quando ela se ajoelha para “se introduzir ao lar” e convida aos habitantes a agradecerem pela casa que os acolhe, não por acaso, a maior parte dos convidados se emociona. Eu me emocionei a primeira vez. Eu nunca tinha parado para pensar daquela forma. Reverenciar o espaço que te habita, independente da sua fé, pensar em cada cômodo, te faz reviver várias coisas que já passou naquele espaço e começa, de fato, a preparar o terreno para a valorização das coisas que realmente importam. É muito bonito. 
Montanha de vergonha
Deve ser a técnica mais conhecida. Marie pede que a pessoa pegue TODA a roupa existente pela casa e coloque uma sobre as outras. Ao ver a reação das pessoas diante da quantidade de roupas, todas se questionam sobre as próprias formas de consumo. E a partir daí vem o famoso “spark joy”, o único critério para decidir se você fica ou não com uma roupa. 
Spark joy
Não é o preço, não é o style, não é o minimalismo, não é o fashionismo, não é o confort-wear, não é o que “serve” ou o que fica bom no espelho, é o que te faz bem. O que te “traz alegria”. O que você se sente bem usando. Você pega todos os manuais de blogueira fashion e guarda-roupa cápsula e joga fora. Fique apenas com o que você gosta e te traz auto estima. E de quebra ainda tenha mais consciência sobre a forma como você consome roupa. Mais anti-regra do que essa para montar seu armário está para nascer. 
Para mim, a técnica da dobra, da gaveta, do organizador é a menor das questões ou, para algumas pessoas, pode ser consequência dessa nova relação com as coisas. Você adota se quiser. Eu não acho sentido em algumas coisas, tenho muitas roupas brancas, por exemplo. Tudo dobradinho em quadradinho, eu não sei qual o modelo, tenho que abrir tudo e fica inviável. Mas funciona para roupa de cama.
Ninguém é obrigado a nada
Marie não uma ditadora de regras. Ela apresenta novas formas de você ver, avaliar e se relacionar com as coisas. A partir daí, você adota o que faz sentido ou não para sua personalidade. E joga ou não fora, ou dá outro destino, como o caso da mulher que perdeu o marido para o câncer e, depois de muitos meses sem conseguir se desapegar das roupas dele, doou tudo para um bazar voltado para pacientes com a doença.
Com livros, por exemplo, ela fala pra você empilhar, “acordar” os livros dando batidinhas na capa e fazer a seleção. Eu só compro livros que gosto, vou ler (nem que seja “um dia”) e são o retrato da minha formação. Eu não me desapego deles, mas já me propus a tirar um tempo para dar uma “lógica” minha para eles na estante. Para quem quer mais espaço, pode se desfazer e doar para uma biblioteca e não, necessariamente, jogar no lixo. 
Tudo depende, de novo, da relação que você tem com a casa e com as coisas — como quando a moça queria “jogar fora” uma caneca que o marido tinha ganhado da madrinha. Quando Marie percebeu que tinha um significado para ele, conversou com a moça e combinaram da tal caneca ser parte da decoração da cozinha — e a esposa até se emocionou, porque não fazia ideia. Ou seja, não se trata de um furacão de jogar coisas fora, mas de sempre revisitar os objetos que compõe a vida familiar e coletiva, se tem ou não sentido concreto e subjetivo. 
Marie Kondo continua insossa e a série parada, mas me trouxe tanto aprendizado que, como boa ariana com ascendente em Áries, não vai fazer da minha casa o primor da organização, mas definitivamente mudou a forma como eu lido com as minhas coisas e a reverência ao que busco construir diariamente como lar.


Ana Clara Ferrari 
https://operamundi.uol.com.br/opiniao/54609/marie-kondo-e-o-trabalho-invisivel-das-mulheres

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Favor enviar e-mail para resposta.